Eu vou, mas não se chateie, não, quem decidiu ir fui eu. Aviso que vou tentar ganhar o que comer nas terras de longe, bem longe, porque aqui a miséria aperta a barriga até doer e nesta terra nada mais dá, eu já tentei. Aqui o chão de barro rachado é tão seco que até o Damião, aquele calango que eu criava, morreu, mas escondi o corpo dele na sombra do mandacaru atrás de casa.
Levo na cintura a moringa de couro sem água, o chapéu furado na cabeça, a peixeira cega na bainha, e nas costas carrego o violão com as três cordas que restaram; lá, ré, mi... a última que se arrebentou me ensinaram, mas eu esqueci. A vontade fez que nem a rima de sanfona no peito, veio me tirar a secura de garganta com as lembranças do cheiro de cajá roubado na feira da cidade, sempre lambuzando a boca quando mordia.
Eu vou, mas prometo que volto
estudado, de roupa limpa e cabelo penteado, pois quero ser doutor. O
senhor me obrigou a ler e escrever, agradeço muito por isso. Mais
uma vez digo que não é nada com o senhor, nem com a mãe ou a irmã,
coitada, é com a chance de viver diferente. Eu sabia desde menino
que eu podia ter o que quisesse, que é só ter vontade; vou aos
dezoito, mas volto aos trinta e três, quero ter tentar uma vida de
certeza para deixar estes dias de talvez.
(Marco de Moraes)